Texto de Antonio Jorge Moura
Na noite do dia 31 de dezembro, enquanto a cidade estiver se preparando para as luzes dos fogos do réveillon e da passagem do ano novo, ogans (sacerdotes), ekedes (sacerdotisas) e vodunces (médiuns que incorporam os voduns) se reúnem no Terreiro do Bogum, no bairro do Engenho Velho da Federação, em Salvador, capital do estado da Bahia - a Roma Negra, a Roma Africana da Diáspora. Repetem o que seus ancestrais faziam há mais de 300 anos.
São descendentes, sacerdotisas, continuadoras e continuadores da tradição do povo Jêje, oriundo do território da ex-colônia de Portugal chamada Dahomé, atual República do Benin, e transportados até o Brasil por mercadores de escravos e preservaram, como expressão da resistência desse povo de língua fon, as tradições espirituais que trouxeram consigo nos calabouços dos navios negreiros, atravessaram o Atlântico até a nova terra, mas nunca esqueceram suas raízes.
Na Bahia colonial o povo Jêje subjugado pela coroa portuguesa logo se destacou no âmbito da população afrodescendente. Tivera contato com as caravanas árabes quando os povos de religião mulçumana haviam atravessado da Ásia para a África. Muitos haviam optado pela fé em Alá. Conhecia a leitura e a escrita, e se notabilizou como mestres de ofício, alfaiates, lapidadores de pedras preciosas e produtores de jóias. Nunca integraram a chamada escravidão braçal, que era usada nos canaviais da cana-de-açucar do Recôncavo baiano. Permaneceram na cidade do Salvador exercendo profissões consideradas nobres.
No século XVIII os Jêje se envolveram numa revolta contra coroa portuguesa que ficou conhecida na História do Brasil como Revolução dos Alfaiates, liderada pela elite negra e que visou proclamar a independência do Brasil, tal como aconteceu no Caribe com a revolta bem sucedida da população afrodescendente do Haiti. A revolta baiana, contudo, antes mesmo de ser deflagrada, foi descoberta pelas autoridades portuguesas, que prenderam e executaram seus líderes no Largo da Piedade, centro urbano da capital da colônia. Todos foram enforcados, esquartejados e tiveram os corpos mutilados expostos a público como exemplo para que outros escravos não pensassem em revolta.
Hoje, o registro dessa história está nas ruas do Engenho Velho da Federação pelo nome oficial da ladeira que liga o bairro do povo Jêje à ampla avenida Vasco da Gama, sempre agitada pelo vai-e-vem incessante de milhares de veículos. É a Ladeira Manoel Bonfim, nome de um dos líderes da revolta executado no Largo da Piedade. Popularmente, a via pública é chamada popularmente de Ladeira do Bogum. É uma referência ao santuário religioso de origem Jêje que sobrevive bravamente no local, cercado de altas e devassáveis construções erguidas no processo de urbanização da cidade que não respeitou a resistência cultural, existencial e religiosa dos Jêje.
Enquanto no Time Square, em New York, vai ser feita a contagem regressiva para chegada do Ano Novo com transmissão pela TV para o mundo; e em milhares de capitais e cidades do mundo, inclusive Salvador, os fogos farão brilhar a noite em comemoração do ano que vai nascer, ogans, ekedes e vodunces da tradição Jêje, enfileirados e vestidos de branco, descem silenciosamente a Ladeira Manoel Bonfim, espiritualmente concentrados, levando apenas na cabeça ou nos ombros uma quartinha de barro. Numa fonte de água também centenária, que fica atrás do Educandário Nabuco, na base da ladeira, um participante da cerimônia enche as quartinhas com o líquido e entrega, uma a uma, aos participantes da silenciosa procissão.
Todos sobem silenciosamente e, em alguns pontos da ladeira, onde só existem construções erguidas pela a explosão demográfica da capital baiana, param e fazem saudações em língua fon aos voduns, como faziam os antigos integrantes do povo Jêje na época em que toda área era dominada pelas matas. Quando chegam no Terreiro entregam a quartinha contendo água da fonte à Nadoji Índia, líder religiosa do povo Jêje, que a despeja a água sobre o "assentamento" que simboliza Olisá, o maior de todos os voduns do povo Jêje.
É a festa Água de Olisá, que marca o começo do ciclo religioso do povo da República do Benin na Bahia, no Brasil, e se estenderá pelos meses de janeiro e fevereiro. Enquanto isso, as festas de Réveillon explodem em todos os cantos da cidade sem que a maioria da população saiba que a data é marcada no Engenho Velho da Federação por uma cerimônia milenar do povo Jêje.
O dia 1 de janeiro de 2010 será dedicado às Águas de Olisá. Vem em seguida as festas de Azonwônodô, de Gbessên, de Lokô, de Gú, Agangatolú e Ágüe, de Kavine, de Tobossi, de Hoho, e de Azonsú. O ciclo será encerrado com a festa de Alugbagê.
Salve os voduns do Bogum e do povo Jêje! Salve meu irmão de fé, o advogado e jornalista Jheová de Carvalho, que certamente estará encantado no Reino dos Voduns subindo e descendo a Ladeira do Bogum.
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