sexta-feira, 30 de abril de 2010

Tentaram fazer a luta armada vencer no tapetão

De Reinaldo Azevedo, na Veja Online:
Afirmar que o “STF reconheceu que torturador tem direito à anistia” raramente é simples manifestação de ignorância. No mais das vezes, trata-se de uma canalhice jornalística, jurídico-intelectual, histórica e política, digna de tramóias de que só a esquerda autoritária é capaz.
Escrevo que só a esquerda é capaz disso porque a direita truculenta fala outra linguagem: a exemplo do fascismo (cujo DNA é de esquerda, é bom lembrar, mas depois derivou), apela aos valores da pátria, às tradições do povo, à sua índole, à sua honra — não que essas coisas todas não possam ter um tratamento digno, virtuoso. Podem! Mas o fascismo os distorce assim como os esquerdistas distorcem os valores do humanismo e da democracia ou para justificar seus crimes ou para golpear as instituições. Derrotados, agora, na sua tentativa de dar um golpezinho jurídico, falam de uma humanidade supostamente aviltada com “a anistia a torturadores”.
Trata-se de uma canalhice jornalística porque não se estava votando ali se torturador tem ou não direito à anistia. Alguém que pratique esse crime vai arcar com o peso das leis, inclusive do dispositivo constitucional que estabelece que ele não é suscetível de graça. O que o Supremo ESCLARECEU foi o alcance da lei de 1979. Aqueles que os revisionistas queriam caçar e cassar estavam ou não contemplados na letra da lei, que estabeleceu que o perdão valia para “crimes políticos e conexos”? Por sete a dois, os ministros disseram que “sim”. Como bem lembrou Celso de Mello, a Constituição de então não tinha o impedimento que tem hoje, e a Lei da Anistia pôde ser aprovada sem ter de excluir este ou aquele crime.
Os promotores da revisão, e parte da imprensa comprou a versão, tentaram criar um confronto inexistente entre os que combatem a tortura e os que a admitem. O relator do caso não podia lhes ser mais incômodo: Eros Grau, que redigiu um voto luminoso, foi ele próprio cassado pelo regime militar e torturado, o que, felizmente, não aconteceu com o radical de gabinete Fábio Konder Comparato, que falou em nome da OAB.
Trata-se de uma canalhice jurídico-intelectual porque se tenta ignorar o significado de uma anistia, tão bem explicitado por Paulo Brossard:
A Anistia, tal como foi concebida, é irreversível. Todos os delitos que foram anistiados, por força da lei, são apagados. É um princípio universal. Não é que se perdoe. Se apaga. É como se nunca tivessem existido. A anistia não é uma ato de justiça, nem de reparação. É uma medida de caráter político, no sentido mais amplo e mais rico da palavra. A lei apaga, por considerações que não são de ordem de justiça, mas são de ordem de conveniência, de utilidade. A Anistia é para pôr fim, para esquecer. (…) anistia não é justiça, é concórdia, é esquecimento. Não condena e não absolve ninguém. Apaga. Esquece.
Anistia, como se nota, não é absolvição.
A afirmação de que “se reconheceu o direito de torturadores à anistia” também é uma canalhice histórica. Porque, então, seria preciso afirmar que se “reconheceu o direito à anistia de terroristas e de sediciosos”. Terá, por exemplo, a África do Sul endossado o racismo quando resolveu esquecer os crimes do apartheid? Terá a Espanha acatado como digna a violência dos fascistas de Francisco Franco? Não! Brasil, África do Sul e Espanha queriam avançar, sair do impasse, e fizeram um pacto político. A Espanha vem bem a calhar: o juiz Baltasar Garzón, chegado aos holofotes, tentou rever as anistias concedidas no país há 35 anos. E está sendo formalmente acusado de violar a lei.
E se trata, é evidente, de uma canalhice política porque a revisão ignorava o caráter, tantas vezes lembrado ontem pelos ministros, “bilateral” da Lei da Anistia: beneficiou extremistas dos dois lados do confronto. E o fez para que os radicais do jogo político parassem de perturbar o processo e permitissem à sociedade avançar. Certamente não terá ocorrido aos promotores da revisão punir crimes de terrorismo ainda hoje impunes. Eles não queriam apenas rever a lei: queriam também reescrever o passado.
E, se canalhice faltasse, há uma outra, que é de ordem moral e ética mesmo. Os que, no campo democrático, lutaram pela Lei da Anistia promoveram a paciente, contínua e vitoriosa RESISTÊNCIA PACÍFICA À DITADURA. Simbolicamente, é essa luta que os revanchistas de agora queriam desmoralizar, como se aquela resistência tivesse sido uma rendição. E não conseguiram.
Três décadas depois, tentaram fazer a luta armada vencer a parada no tapetão do Judiciário. Quebraram a cara. E o Brasil ganhou.

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