De Reinaldo Azevedo, na Veja Online
O PSB encerra hoje a longa agonia do deputado Ciro Gomes (ex-cearense) e bate o martelo: “Não é candidato”. Os deuses olímpicos do petismo punem, assim, com severidade o “mortal” por sua “húbris”. Ciro agora diz que sua candidatura havia sido acertada numa reunião no ano passado, na qual houve até algumas lágrimas. Pois é… Em política, é bom desconfiar sempre do excesso de emoção. Enquanto uns choram, os outros fazem cálculos. É claro que Ciro foi enganado. Ou não estaria tão furioso. Judas traiu com um beijo; Lula, mais dramático, com lágrimas. Parafraseando Cecília Meireles, aquele traiu Jesus; Lula, um simples deputado.
Apelo a dramas humanos inscritos em nossa memória para evidenciar que não há nada de muito novo sob o sol no que diz respeito às fraquezas humanas. Tampouco há novidade na política. Lula não chega a ser, assim, um grande intelectual e é certo que não leu O Príncipe. Mas poderia escrever sem receio o seu “quomodo fides a principibus sit servanda“, nas pegadas de Maquiavel, explicando de que modo pode o príncipe manter a fé na palavra empenhada.
É preferível, dizia o autor no capítulo 18, manter-se fiel ao que se disse, sem truques, mas, reconhecia ele, alguns príncipes realizaram “grandes coisas a despeito de terem tido em pouca conta a fé da palavra dada”, conseguindo mesmo “superar aqueles que se firmaram sobre a lealdade”.
É claro que Maquiavel, filtrado ou intuído por Lula, vira uma coisa, assim, mais simplezinha, né? Pode resultar, por exemplo, na “Teoria Geral da Bravata” — na oposição, defende-se uma coisa; no governo, o seu contrário… Ciro, com efeito, criou todas as circunstâncias para se traído ao, voluntariamente, sujeitar-se às vontades do presidente, mudando até seu domicílio eleitoral. Nenhum outro setor da vida está tão sujeito à volatilidade da palavra empenhada — e notem como isso é antigo — quanto a política.
Não há, pois, nada de essencialmente novo nessa lambança. Lula acalentou Ciro enquanto ele foi útil a seu projeto e decidiu rifá-lo quando ele passou a ser um aliado incômodo, que não aceita o papel que lhe foi reservado. Privilégio dos príncipes: cumprir ou não a palavra. Não é aí que está a particularidade desse caso — ou, por outra, a sua perversidade. Até porque Ciro é bem grandinho e sabe o que faz. Também é um político e já traiu antes. É um traço da profissão.
O que chama a atenção em particular nesse episódio é outra coisa. Marco Aurélio Garcia, aquele — o guardião do Tártaro, o Cérbero de Lula —, emitiu nesta segunda o seu pensamento sempre elegante sobre o episódio. Leiam:
“Estamos numa democracia. Cada um fala o que quiser. Eu tenho muito apreço pelo Ciro. Ele colaborou muito com o governo do presidente Lula. Eu não queria que este momento particular e declarações que ele esteja fazendo venham a comprometer a sua trajetória. A trajetória do Ciro é uma trajetória extremamente meritória, e eu fico com essa boa imagem dele”.
Observem que, nas reflexões do Marco Aurélio do PT, o caráter, vamos dizer, utilitário de Ciro fica explicitado sem qualquer fingimento — e saber fingir é parte das ações decorosas dos políticos. Os “sinceros” choram, se é que vocês me entendem… Para Marco Aurélio, a trajetória “extremamente meritória” de Ciro está em risco, e quem a ameaça, obviamente, é o próprio deputado, que não estaria sabendo se comportar adequadamente. Juiz do destino do outro, autor de seu drama político, o PT pretende também pautar a sua reação e definir o que é e o que não é aceitável no comportamento do traído.
Aí, sim: é contra esse complexo de Deus — ou de Zeus (para voltar ao primeiro parágrafo) — que eu permanentemente me insurjo. Se a política não é coisa de santos, e não é, também não pode ser obra de ogros, sejam eles petistas ou não. O PT só merece a minha especial atenção por conta de sua ação metódica.
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