quinta-feira, 24 de junho de 2010

Um resgate da historia e da tradição do bairro de Itapuã

Entrevista da jornalista Inaiá Lua, realizada em maio de 2010
“Coqueiro de Itapuã, coqueiro. Areia de Itapuã, areia. Morena de Itapuã, morena. Saudade de Itapuã, me deixa”, já cantava Dorival Caymmi no seculo XX, falando deste bucólico bairro, no litoral norte de Salvador.
Itapuã carrega um conjunto de conhecimentos, de antigas tradições e crenças, que até hoje mulheres que fizeram parte da história do bairro guardam e transmitem. São as Ganhadeiras de Itapuã.
Antigamente, elas buscavam, através da venda de peixe, frutas nativas, beiju, cuscuz, mungunzá, garantir a sobrevivência. Hoje, o nome é dado a um grupo musical que se apresenta com cantigas, cirandas, samba de roda, além de dança e teatro.
Um dos idealizadores do grupo é Amadeu Alves, compositor e instrumentalista baiano, nascido e criado em Itapuã, onde ainda mora. Em sua trajetória, procurou sempre proximidade com as diversas manifestações culturais, o que contribuiu para a formação do grupo.

Você, como típico nativo de Itapuã, conte a sua relação com o bairro.
- Passa por várias etapas. Hoje, é uma relação que lida com a memória de um tempo, de um lugar, do ambiente em que vivi e as possibilidades daquela época, como a liberdade, a satisfação, o prazer de desfrutar muito mais da natureza e das festas. Depois, vem a fase das transformações e eu, enquanto criança, não tinha noção da dimensão deste crescimento. Então, hoje, a grande âncora tem sido a questão da cultura, da arte, até porque trabalho com isso, através da música, e procuro estimular as pessoas a pensarem o bairro por esse viés.

Fale um pouco da sua infância neste local. Quais eram as brincadeiras há 30 anos?
- Brincava de pé na lata, esconde-esconde, jogava bola... Existia o campinho, o Beira Rio, a própria praia, o Campo da Ilha, que ainda tem, mas é de outra forma. Brincávamos também de salão, disputa de tênis, carrinho de rolimã, pipa. Sempre tive um gosto especial por caminhar, brincar no mato, tomar banho de rio. Então, era muita liberdade para a criança, nas dunas e lagoas.

Você tem filhos?
- Tenho dois, um de 23 anos e outra de 21 anos. Hoje, já estão na fase adulta.

Como foi a infância deles no bairro de Itapuã?
- Eles pegaram um pouco dessa liberdade, aproveitaram a praia, tomaram banho na lagoa, jogaram bola, baliô, empinaram pipa. Mas, na adolescência, entraram em outra fase de brincadeiras e de interesses.

Conte-nos sobre as antigas tradições de Itapuã. Você participava dos festejos?
- Eu era mais espectador, porque meus pais não eram nascidos em Itapuã. Mas, na prática, aproveitei o samba. Desde pequeno, comecei a tocar com a galera do sambão e isso me marcou, até musicalmente falando. Muito do que tenho esculpido em minha memória, hoje ajuda na produção dos arranjos musicas. Eles têm a ver com essa experiência. Mas só na fase adulta passei a me relacionar com as tradições.

Como começou sua relação com a música?
- Eu costumo dizer que foi no cordão umbilical da minha mãe. Depois disso, ouvindo os sons da natureza e o repertório musical dos meus pais. Isso é um relacionamento de ouvinte, onde consegui sentir as sensações que a música provoca. Comecei a tocar violão com sete anos, meus irmãos me ensinaram. Em seguida, com 13 anos, já tocava em grupos e em festivais. Mas, entre meus oito e nove anos, costumava ir a festas de largo, vi os blocos de percussão, a guitarra baiana e presenciei os primeiros trios elétricos. Portanto, isso faz parte da minha formação musical. Só depois, quando tocava em banda, comecei a estudar, como autodidata. Mas sempre desenvolvi uma trajetória intuitiva, nunca fui muito técnico e disciplinado e, com isso, descobri um acesso ao conhecimento que está dentro de mim e me permitiu compor diversas músicas.

Para você, os movimentos artísticos “salvam” os jovens da marginalidade?
- A música pode salvar, assim como qualquer outra atividade em que o indivíduo possa descobrir algum talento. Não adianta querer levar música para alguém que se destaca mais como escultor, ou como padeiro, carpinteiro. O importante é fazer algo que o desperte. Mas a música pode salvar, sim.

O que eram As Ganhadeiras de Itapuã, no início da década de 50, na época em que o bairro era uma aldeia de pescadores?

- Há uma música que conta um pouco quem elas eram: “As Ganhadeiras, nascidas na praia de Itapuã, vendendo peixinho barato, pescado pela manhã, quem quer comprar os peixinhos, eu trago aqui para escolher, Deus ajude a pescar para você vender. Já vou embora senhores, espere até quando eu voltar, vou esperar a chegada do Saveirinho no canal e também a jangadinha que entra no mar a navegar, com todos os peixinhos que nós precisamos rematar”. Rematar é o momento em que elas iam comprar o peixe com os pescadores, tratavam, cozinhavam e iam vender nas freguesias. Saíam andando, porque não tinha transporte, até chegarem a uma comunidade onde pudessem ganhar dinheiro, por isso o nome “ganhadeira”. Essa atividade não acontecia apenas em Itapuã, ocorria na cidade como um todo e em outros estados. Eram as negras de ganho, que vendiam os produtos, ganhavam parte do dinheiro da venda e tinham um acordo com seus senhores.

Ser “ganhadeira” era uma profissão?
- Era uma profissão, a partir do momento em que elas tinham o compromisso de pagar um valor, que se chamava jornal, diariamente, para seus proprietários. O que passasse daquele valor, era delas. Era uma forma cômoda de os senhores de engenho lucrarem, pois não precisavam sair de casa e obtinham o dinheiro através do esforço do trabalho das negras.

Hoje, Ganhadeiras de Itapuã é um grupo de samba de roda, acompanhado de cantigas e danças, formado por senhoras, jovens e crianças. Como surgiu esse grupo?
- Surgiu, a partir de um trabalho que estava sendo feito, inicialmente, pelo GRITA – Grupo de Revitalização de Itapuã. Fui um dos idealizadores e começamos a pesquisar a história antiga do bairro. Depois, o grupo se dispersou. Quando dei segmento nas minhas atividades, fui pesquisando e estudando, sempre em contato com as pessoas mais velhas. Em determinado momento, em 1994, surgiu o conceito de fazer um coral de pescadores e lavadeiras. Quando tive a ideia, convidei essas senhoras e, nas primeiras reuniões, surgiram algumas músicas a partir da lembrança delas, como a que conta a história das ganhadeiras. A partir disso, o nome Ganhadeiras passou a traduzir o que queríamos fazer naquele momento e criamos o grupo.


Qual é a sua relação com o grupo?
- A beleza dessa tradição. A força da cultura de um povo, que está correndo o risco de extinção. Isso me incentivou a trabalhar para reconstruir esse tecido de memória.

Qual a finalidade do grupo, resgatar as antigas tradições de Itapuã?
- Esse é um dos objetivos. Já temos um grau de realização e, partir daí, começamos a reescrever a história. Não é só resgatar e registrar, para depois deixar engavetado. Hoje, procuramos divulgar através da escrita, do discurso e das músicas. Esse processo deu início a novas possibilidades para várias pessoas. O objetivo é ir além do que já foi feito e trazido à tona. Portanto, a finalidade principal é que isso sirva para construir um futuro e um presente.

Vocês têm algum apoio do governo?
- Não. Nós tivemos premiação do Ministério da Cultura. Ganhamos pelo trabalho feito, por ser uma cultura viva. Essa conquista ajudou a estruturar mais o grupo. Ganhamos instrumentos e equipamentos. Hoje, existe uma busca por uma aproximação mais estreita com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, para trabalhar a questão do patrimônio da cultura das Ganhadeiras de Itapuã.

Como o grupo se mantém?
- O grupo praticamente sustenta-se com as apresentações. Os próprios componentes investem nas roupas, e isso é feito muito prazerosamente por eles. Para o grupo ter uma sede, um projeto maior, depende de recursos que nós não temos.

Onde elas se reúnem?
- Muitas vezes, na Casa da Música ou em um lugar chamado Senzala do Samba. Elas moram perto umas das outras, na Baixa do Dendê, que é o reduto maior das Ganhadeiras.

No decorrer dos tempos, o que melhorou em Itapuã?
- Bom, existe a visão romântica, daqueles que vêem a Itapuã de antes, onde existia um silêncio, uma tranquilidade maior, sem energia elétrica. Mas o bairro melhorou em alguns aspectos, como o acesso e serviços. Temos bancos, farmácias, ruas asfaltadas, supermercados, transporte público. Hoje, tem muita facilidade e conforto. Só que, ao mesmo tempo em que ganha, perde também.

E o que piorou?
- Todo esse desenvolvimento trouxe poluição sonora, isso é uma perda. Outra é a desordem em alguns espaços públicos. A questão cultural passou a ficar diluída no universo do consumismo. Não há bares e restaurantes temáticos, voltados para uma cultura. Perdemos também em outros aspectos, como nas questões ambientais, na especulação imobiliária, na degradação de áreas muito valorosas, como a Lagoa do Abaeté. Os rios, que eram de água limpa, hoje são córregos de esgoto.

Para você, Itapuã ainda tem o velho charme que atraiu Vinícius de Moraes e Dorival Caymmi?
- Tem, mas está encoberto por toda essa capa de urbanidade desordenada. Mas “o mar que não tem tamanho, o arco-íres” ainda há. A Praça Caymmi é uma lástima, esse ar de lugar de vila não existe. Você precisa saber aonde ir, como na Rua K, no Farol de Itapuã, mas com o olhar e os ouvidos disponíveis para sentir. Então, o charme, fisicamente, pode-se dizer que não tem. Hoje, o que se vê é uma avenida movimentada, lojas como a Insinuante, Ricardo Eletro, Casas Bahia, uma arquitetura que não se preservou. Mas a magia do bairro ainda permanece.

Você conheceu Vinícius de Moraes?
- Quando comecei a tocar na noite, com 13 anos, foi na Barraca do Galo, um lugar que ele freqüentava muito. Mas foi justamente um ano depois da morte dele. Então, por pouco, não o conheci, mas tive a oportunidade de vivenciar um ambiente que ele vivenciou.

Concorda com as descrições que ele fez de Itapuã naquela época?
- Vinícius era uma pessoa que trazia uma experiência de vida do Rio de Janeiro e de um mundo ao qual ele tinha acesso. O olhar que ele tinha era de um bom vivant, pertencente a uma elite intelectual, social e econômica. Ele nos deixou uma contribuição, lembranças da década de 70. Não precisava de muito para sentir e escrever sobre Itapuã, era uma beleza contagiante. Hoje, uma pessoa quando vem do Rio de Janeiro, ao deparar-se com o que vê, fala: “Pô, ouvi a música de Vinícius, cheguei aqui não entendi nada, cadê a Praça Caymmi?”.

E Dorival, você conheceu?
- Também não.

E concorda com a opinião que ele tinha sobre Itapuã?
- O que seria discordar? Quando ele fala: “O mar, quando quebra na praia, é bonito, é bonito”. Como vou discordar disso? Ou quando canta: “Coqueiro de Itapuã, coqueiro. Areia de Itapuã, areia. Morena de Itapuã, morena. Saudade de Itapuã, me deixa”. Tudo isso eu sinto, porque até hoje vejo o coqueiro de Itapuã, ele consegue nos transportar... Ele cantou “Alodé Iemanjá odoiá ! Senhora que é das águas, tome conta do meu filho, que eu também já fui do mar. Hoje, estou velho acabado, nem no remo eu sei pegar”. Não tem o que discordar disso, só se eu fosse evangélico e contra ouvir o cântico de uma entidade do candomblé. Hoje, você vai à praia e a areia é poluída, assim como a Lagoa do Abaeté. Nós, atuantes da cultura de Itapuã, temos o grande papel de fazer com que esse local não seja só a Itapuã de Vinícius de Moraes e Dorival Caymmi. O que os transformaram em grandes nomes foi baseado em algo que não era daqui. Uma produção empresarial e cultural que estava centrada mais no eixo Rio – São Paulo.

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